domingo, maio 14, 2023

Ela me alcançou

Caiu um ficha essa semana. Como se tivessem a jogado de muito longe. Bateu direto na minha testa e estou até agora atordoada. Parece que chegou a minha vez. Eu venho de uma linhagem de mulheres psiquicamente doentes. Minha avó materna teve esquizofrenia. Morreu cedo. Abandonada por quase todos. O marido a deixou e tiraram os filhos dela, espalhando-os por casas de parentes. Menos a do pai deles. Meu avô não quis cuidar dos filhos. Meu avô é um escroto por ter feito, estatisticamente, o que a maioria dos homens fazem quando uma mulher adoece: a abandona. Mas ele foi muito mais escroto quando abandonou os filhos, colaborando mal e porcamente apenas com o lado financeiro. Minha mãe desenvolveu esquizofrenia aos 32 anos após uma depressão pós parto quando meu irmão nasceu. Meu pai tentou lidar, mas depois de alguns anos, ele entrou para estatística dos homens que abandonam mulheres doentes... Ele, a princípio, nos deixou com nossa mãe. Depois viu que era demais para uma criança pequena e salvou meu irmão. Pediu que uma irmã de outro estado cuidasse dele. E eu teria que cuidar dela. Foram anos difíceis. Depois de algum tempo eu já não tinha paciência. E implorei ao meu pai pra me levar com ele. Eu fiz isso. Às vezes me perdôo, às vezes me culpo. Depois de um tempo, todos voltamos pra cuidar da minha mãe. Eu, depois meu pai e meu irmão. Meus pais estão juntos até hoje. Minha mãe continua sendo uma pessoa difícil, mas cada vez menos. A idade e os medicamentos apaziguaram um pouco a doença. Foi algo que eu sempre tive medo. Será que eu vou ter essa doença? Não vou ter filhos (tive duas) para que eles não sofram como todo filho que vê a mãe alucinar sofre. Fui a uma psiquiatra uma vez. Eu era professora nessa época e estava angustiada por não saber lidar com os problemas da profissão. Mas perguntei a psiquiatra: "Dra., Acha que eu posso vir a desenvolver esquizofrenia?" Ela respondeu: "Não. Você não tem traços". E fiquei aliviada. Até ver uma das tias que mais gostava desenvolver esquizofrenia já com mais de 40 anos. Uma tia que, ao meu ver, não tinha traços da doença. Mas lá estava ela. Colocando móveis na rua para vender. Transformando a vida das pessoas que se importavam com ela num inferno. Meu esposo sabe de tudo, todas a histórias. Mas eu não sei se ele realmente tem a noção do caos que pode vir a ser a vida dele. Eu o amo tanto. Aprendi a ama-lo cada dia mais. E colocá-lo nessa posição me assombra. Enfim, essa semana pode ser que a doença possa finalmente ter me pegado. Eu tenho sentido que as pessoas falam, debocham de mim, e tenho nutrido uma raiva, uma mágoa por pessoas que até algum tempo atrás eu me dava bem. A cada dia, eu crio teorias diferentes sobre cada pessoa que acho tecer algum comentário negativo sobre mim. Quando fazem algum comentário machista ou preconceituoso, eu creio ser para me deixar irritada. Fazem pra me irritar. Fico nervosa. Tenho crises de pânico. Choro. Ela me mantém presa ao setor de propósito. Quer me ver ruir. E minha mente vai rachando devagar. Uma fissura aqui, outra ali. Penso em morrer. Sofro. A cada minuto sofro um pouco mais. E continuo nutrindo raiva e mágoa daqueles que acho quererem me ver sofrer. E bum. Tenho uma crise semelhante a crise que tive há alguns anos atrás. Mas dessa vez há algo diferente. Eu me dou conta que acho que é tudo da minha cabeça. Duvido do meu discernimento. Pesquiso na internet sobre mania de perseguição e sinto que estão me descrevendo. Contando a minha história. É isso. Ela finalmente chegou. Por quê agora? Tenho 39 anos. O que aconteceu? A rotina muito puxada, talvez. A angústia de não saber como será o futuro da minha filha mais velha que está dentro do espectro autista (ela nunca deverá ler esse texto. Vai achar que a culpa é dela). A angústia de vê-la doente. Ela teve dengue. Foi uma semana puxada entre exames e horas no hospital. Mas agora ela está bem. Agora que percebi que foi tudo da minha cabeça. Eu não quero voltar para o trabalho. Tenho vergonha e medo de ter outra crise. Vão ficar todos me olhando. Será que minha mãe passou por isso no trabalho dela? Agora tenho uma profunda empatia por ela. Por quanto tempo ela teve que aguentar isso no trabalho? Deve ter se sentido sozinha e angustiada. Preciso de um médico. Será que ele vai me passar algum remédio muito forte. Meu pai disse que até acertarem o remédio da minha mãe, ela ficava dopada. Desmaiava com o rosto na comida. Eu não lembro disto. Talvez fosse nova demais pra lembrar. Tenho medo. Fico apática. Sofro de medo. Meu esposo não tem noção da extensão do meu medo e da minha angústia. Algumas pessoas vão dizer que é falta de deus. Sou agnóstica. Quase uma ateia. Duvido muito da existência de um deus. Se existir uma força divina, provavelmente é não binária. O embate entre o feminino e o masculino é algo que divide, e de alguma forma oprime um dos lados. As pessoas que dizem que é falta de deus não conhecem a minha mãe. Ela ora da hora que acorda até a hora que vai dormir. Lê a bíblia o tempo todo. Isso me deixava irritada porque eu sabia que quando ela estava orando demais, era quando ela estava tendo uma crise e tornando a vida de alguém um inferno. Desconfiando dos vizinhos, dos amigos, da família. Orava de um lado e tecia teorias de conspiração do outro. Aprendi a odiar a religião por causa disso. De que adianta a religião se não a fazia melhorar. O que a fazia melhorar eram os remédios. Aprendi a amar a ciência, então. Se pessoas que não tem deus adoecem (num quê de punição), por quê o padre Marcelo Rossi teve depressão? A verdade é que a culpa da nossa doença, a doença das mulheres da minha família não é falta de deus. É uma genética ruim. Que ao acaso, se instalou nos nossos genes e não há absolutamente nada que possamos fazer a não ser procurar ajuda médica.